sábado, 28 de julho de 2007

Do livro Memórias à Beira de um Estopim

Foto de Pierre Verger



22/12/03

O homem que fugiu de casa ontem passou pelo meu verso numa correria desatada – os cabelos desgrenhados, a roupa esfarrapada. Em seu ouvido, ainda ecoava a fome de seus filhos esquecidos em dois cômodos e um banheirinho fedendo urina, fezes e vômito.

O homem que fugiu ontem de casa resvalou um olho cansado ao passar pelo meu poemasua dor o levará a São Paulo, ou a outra grande cidade que fede a gás carbônico e vagina; o levará aonde disseram ser o dinheiro mais verde e o bolso menos fundo.

Ao homem que fugiu ontem de casa e que, por um momento, estacou-se diante desse poema, eu tenho apenas o meu respeito, nada mais; mas saiba que aqui também estou eu, escondido desde o momento em que fugi e resvalei com a fome dos que plantam, pescam e colhem a mesa que enfeita nosso jantar e produzem com suor e lágrimas o sono tranqüilo de nosso vizinho...



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quarta-feira, 18 de julho de 2007

Algumas palavras sobre um idiota da mídia

Foto do cartaz do filme Reds
(ou de como a Televisão me deixou burro muito burro demais!)


O Vidiota, romance de Jerzy Kosinski consegue resumir toda uma população em um único personagem. E consegue mais que isso. Ao tratar de um menino órfão, criado isolado do mundo, tendo por companhia um jardim para cuidar e uma televisão para assistir, o autor sintetiza uma gama de pessoas escravizadas pela mídia, que não conseguem viver senão diante da tela. E é na tela que se vêem espelhados, na tela onde não buscam respostas para nada, apenas se anestesiam pelo brilho do aparelho e seus recursos de sedução.
Em termos de literatura o trabalho é de uma simplicidade que chega a dar nos nervos. Uma narrativa morna, que a todo instantepistas que irá esfriar. No entanto, o leitor é compensado com uma história vigorosa, com um quê de profética.
O livro é fácil de se ler, mérito que se deve a narrativa linear, de linguagem simples e fluente. Existe, aliás, uma bem sucedida adaptação para o cinemaroteiro premiado, adaptado pelo próprio Kosinski. Aqui no Brasil o filme, que tem Peter Sellers no papel principal, se chama Muito Além do Jardim. As curiosidades cinematográficas não residem apenas no fato dessa película ser o último trabalho de Sellers. Kosinski, que viria a se matar no ano de 1991, aos 60 anos de idade, fez o papel do revolucionário soviético Grigory Zinoviev no filme Reds, de Warren Beatty. Kosinsk era polonês, naturalizado americano.
O livro é de 1971 mas poderia ter sido escrito agora, nas costas do último Big Brother ou de outro reality show qualquer. Ao falar de um homem que foi educado pela TV, que tem no controle-remoto o poder de mudar o rumo de sua vida a todo instante, a obra acaba retratando com fidelidade assombrosa o poder da mídia de criar os seus ídolos.
O enredo é simples: numa dessas fabulosas manobras do destino, Chance tem seu nome citado na TV pelo presidente dos EUA, o que o torna a figura central de um país em crise, que busca na figura emblemática do jardineiro as respostas para todos os problemas do mundo. Porém Chance não passa de um homem inculto, que não sabe ler e desconhece qualquer coisa que não seja a poda da grama, o combate às pragas, e a aplicação do adubo. A proximidade com o que vivemos não é mera coincidência. Frei Betto nos fala dos imergentes, ou melhor, os novos-pobres, “classe alijada do acesso à terra ou à casa própriaque sãoclientela cativa de astrólogos e tarólogos, cultos neopentecostais e orixás, literatura de auto-ajuda e movimentos esotéricos”. A TV exercendo fascínio sobre eles com suas fórmulas empacotadas e entregues para todo o Brasil num piscar de olhos. Figuras criadas nos estúdios, em edições de imagens, sem discurso nenhum, mas que se bastam tendo um fim em si mesmos, representado-os in veritas.
Não é isso que vem fazendo esses programas? Apresentando nulidades a serem seguidas como exemplo no campo da moda, do comportamento, etc? Não é isso que vem fazendo cada um dos dez ou doze canais disponíveis gratuitamente: forjando com o pior dos metais os heróis que serão noticiados nos jornais ao lado de matérias que eles sequer compreendem, sendo semanalmente capa de revistas que não lêem?
Ainda hoje mesmo temos programas catapultando os novos cantores, que se não estivessem na telinha nunca chegariam a gravar um CD. Temos, três ou quatro vezes por dia, programas promovendo ao vivo, nos telejornais, nas competições esportivas, aquelas que amanhã estarão nuas nas revistas pornográficas, rendendo milhões e milhões para a indústria da masturbação. Essas existindo apenas diante das lentes objetivas, cobertas de maquiagem e restauradas através do photoshop! Recursos capazes de corrigir qualquer incomunicabilidade possível.
Jerzy acaba por tratar desses personagens que não existem de fato. Simulacros criados pela mídia para atender as suas necessidades de mercado e que muitas vezes vão além desse propósitosem nunca deixar de existir apenas enquanto imagem gerada pela TV e por ela modelada.
O que ocorre com Chance, nosso humilde jardineiro, ao ser seriamente cogitado para uma cadeira na Casa Branca não deve ser novidade com algo ocorrido aqui no nosso lado do hemisfério. O link é inevitável.
A leitura é válida. E valiosa.


Camaradas, há um ensaio na Net, disponível em e-book, que se chama Ser Nada – George W. Bush: um Simulacro Presidencial”, de Carol V. Hamilton, que eu recomendo. Não recomendo como acho que se trata de uma leitura obrigatória. Trata-se de um trabalho que faz um paralelo entre Chance e Bush, tratando com muita propriedade da inexistência de ambos! http://www.livrosdeareia.com/sernada.htm

Outras leituras sobre mídia:
Manifesto Potencialista, vários autores
Cidadão Kane, filme de Orson Welles
Muito Além do Cidadão Kane, documentário da BBC de Londres
1984, livro de George Orwell

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domingo, 8 de julho de 2007

Um Dia Desses

Tela de Dorothea Tanning

Como disse anteriormente, estou com um romance prontinho na gaveta. Toda a trama se passa em uma república estudantil, QG de um grupo de Intervenção Urbana - tudo regado a poesia, política, música, teatro, as deliciosas inconseqüências da juventude, etc, etc... O livro é organizado em capítulos curtos, havendo muitas colagens de trechos de livros que gosto, além de otras cositas más...
Vou publicar aqui um capítulo que acho significativo. Espero que vocês gostem. Abraços a todos!



                                  29     
            Permiti minha vida às ruas da cidade. Febre avassaladora movendo minha percepção pelo sombrio corredor humano: dínamo diabólico nos sugando para as polaridades obscuras do nada; Caronte, imenso imã escondido debaixo das montanhas ao norte do paraíso, ou de qualquer coisa impossível, nos atraindo como pequenos parafusos – as moedas sobre nossos olhos, os marcapassos, o ferro em nossas veias, nossos pensamentos de chumbo sobre a morte debaixo dos pneus dos carros ou da vida voando e cagando estanho derretido sobre nossas cabeças.
            O corpo fechado, incapaz de conter o halo de ira que escapa pelos poros, ilumina o dia, se confunde com o néon das fachadas das lojas, se mistura aos faróis dos ônibus e se perde entre o clarão do fósforo riscado. 
            Permiti minha vida à correnteza de carne humana escorrendo pelas vias da cidade: as idéias coletivas sobre qualquer coisa dispensável se misturando num único cardume que é devorado mais adiante, para renascer novamente após a travessia da rua. Alguém que chora passa despercebido, ainda que destoando da desarmônica orquestra magistral. Penso: “era o que todos estariam fazendo se os sapatos não ditassem o ritmo frenético da metrópole e as pernas insistissem em devorar o caminho”.
            Sobre minha cabeça, reclames do tráfego se mesclam aos sinais invisíveis dos celulares, às ondas do rádio e da tv, que se unem antes de comunicar aos homens a necessidade da pressa e do temor.
            Mais tarde não haverá mais minha vida, porém a cidade prossegue. Ergo o controle-remoto e mudo de canal.